Tratamento de Doutor ao Advogado Provém da Roma Antiga.

Outro dia, buscando nas infovias da vida um artigo doutrinário, me deparei com um texto assinado por uma daquelas autoridades lotadas de certezas, desprovidas de qualquer dúvida e imersas na mais absoluta arrogância.
Do alto de sua titulação acadêmica, o indigitado – como tantos outros de mesma estirpe professoral,  insistia em retirar o tratamento de doutor aos advogados, entendendo tratar-se o termo de uma titulação acadêmica.
Pura grosseria.
Freud costuma explicar essa inquietação nervosa face ao tratamento de doutor dado aos advogados, magistrados, delegados e promotores.
Há muita confusão e preconceito com o uso de “doutor” como forma de tratamento e título acadêmico, como se um excluísse o outro.
Porém, a história demonstra o acerto do uso do termo também como forma de tratamento. Mais, o tratamento precede o título. Senão vejamos:
Doutor é derivado de doutrinador.
O termo vem de Roma antiga. O direito romano entendia como fontes do direito o costume, a lei, o plebiscito, a interpretação dos prudentes e os editos dos magistrados.
A interpretação dos prudentes era sempre um ensinamento – firmava uma doutrina.
Doutrina é ensinamento – vem de docere: ensinar.
O termo docere foi introduzido por Cícero, o grande advogado romano, em 55 a.C., quando escreveu De Oratore,onde pregava que um tribuno devia usar da eloquência, a arte de bem falar.
Segundo Cícero, o  orador eloquente devia cumprir três objetivos: docere – ensinar, explicando e expondo argumentos; delectare – agradar, deleitar, captando o agrado e a atenção do auditório, de modo a não causar aborrecimento; e movere – comover, apelando às emoções e tentando “tocar” os sentimentos do auditório.
A doutrina, portanto, nasceu vinculada ao direito. Ela provinha dos doutores, ou doutrinadores. Quando havia harmonização nessas opiniões dos doutrinadores, firmava-se a comunis opinium doctorum, que chegou a ser expressamente equiparada à lei no período do Imperador Teodósio II, no século V.
Os doutores advogavam, atuavam como jurisconsultos ou tribunos (afinal os advogados eram todos patrícios).
O termo advogado proveio da contração de ad vocatus –  para ser chamado (vocare).
A advocacia era uma atividade nobre e inviolável. Ter um tribuno disposto a defender sua causa, portanto, era uma honra – e daí vem o termo honorário- uma retribuição à honra de ser defendido por um tribuno, ou ter seu ponto de vista abalizado pela prudência, ou ensinamento de um jurisconsulto.
Causas eram defendidas pelos advogados perante autoridades (Consules, Senado ou Pretores) –  a douta opinião, por sua vez, consistia em interpretar com “prudência” os textos legais. Jurisprudentes, então, eram jurisconsultos encarregados de adaptar os textos legais às mudanças do direito vivo, buscando solucionar os conflitos, preenchendo, assim, as lacunas deixadas pelas leis.
Adotada a doutrina pelos pretores, a jurisprudência tornava-se um edito.
Os doutrinadores formam a atividade orgânica do direito. São os doutrinadores que ousam não apenas interpretar a lei e alterar a sua interpretação conforme os costumes mas, também, propugnar sua abolição em prol da justiça. Essa atividade da postulação é conferida aos advogados, que exercem essa prerrogativa no seu ministério privado. Assim, doutrinando, os advogados postulam.
Por isso os advogados são chamados de doutor, desde os tempos de Roma, e no judaísmo, sob ocupação romana, também.
Por óbvio que à medida em que a atividade se ramificou, magistrados, persecutores penais e autoridades policiais também ganharam o tratamento pronominal.
Voltando à história, com a decadência do império romano, o termo ganhou asas.
O cristianismo, após adotar cânones romanos a partir do Concílio de Niceia, adotou o termo  “doutrina religiosa” e o termo “doutrinador” ou “docente”, para seus pastores e santos.
O cristianismo fez bem em usar o termo. De fato, Jesus foi um grande doutrinador (e fez seguidores, todos doutrinadores). Como rabino, Jesus alterou os eixos de entendimento do que era o divino, transmitiu a impressão de Deus como fonte viva de amor incondicional e o aproximou da humanidade. Advogou para a causa, porém não advogou em causa própria – e nem poderia – perante a autoridade romana – ainda que esta – Pilatus, percebendo o problema, lhe tenha dado tecnicamente uma oportunidade… Não podia, dadas as circunstâncias, ser tratado como doutor quando estava na terra, mas é merecedor do tratamento pela eternidade.
Posteriormente, na idade média, com a organização das Universidades, o termo doutor passou a integrar a qualificação acadêmica dos que professavam as doutrinas do direito, da filosofia e das ciências – e nesse caso específico, virou título. Só então, o tratamento de doutor estendeu-se à medicina, como forma respeitosa de tratamento aos seus bacharéis.
Não é preciso ser PHD, aliás,  para observar que os doutores já militavam no direito ANTES de existirem universidades…
De raiz latina, o direito português não ignorou o detalhe milenar, e o tratamento de doutor acompanhou os bacharéis em direito portugueses em respeito à tradição, até aportarem – os bacharéis e a forma de tratamento, no Brasil.
Assim, em respeito à arte do direito, de Cícero até hoje,  DOUTOR é forma de tratamento ao profissional do direito, emprestado à academia, que o utiliza também como título.
Não é possível, definitivamente, confundir um com o outro, a menos que se queira assassinar a história.

Há quem faça questão do uso do tratamento ou mesmo busque tutela judicial para obrigar outros a fazê-lo. A postura é tão condenável quanto a daqueles que se arrogam academicamente a monopolizar o termo.  O fato é que educação e polidez não se exigem de alguém, se espera que alguém as tenha e as use devidamente.

O assunto  da polidez no trato e cordialidade nas relações é complexo  nos dias de hoje, quando a regra é agredir para argumentar e ofender para se impor. Mas o resgate histórico das formas de tratamento aqui singelamente proposto, dirige-se justamente aos que diariamente penam nos balcões da mais cara e paquidérmica das burocracias do planeta, visando assegurar ou pleitear direitos de cidadãos cada dia mais indefesos… com enormes custos e sacrifícios pessoais, diuturnamente desprezados por quem fez da ignorância modo de vida.

Portanto, se você, leitor, for uma pessoa educada, polida, inteligente e, sobretudo, de bem com a vida, não se incomodará em tratar um jurisconsulto como doutor.
Porém, se estiver de mal com a vida… deixar de fazê-lo ao tratar formalmente com um profissional do direito, não demonstrará qualquer erudição, só evidenciará má educação – ainda que haja doutrina farta a apoiar a grosseria…

Sem esses doutores do dia-a-dia, que doutrinam a cada petição subscrita, que irritam autoridades, acadêmicos, partes contrárias e mesmo clientes convictos de suas razões, não haveria democracia, só a mais ordinária ditadura da burocracia.

Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
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